quinta-feira, 4 de março de 2010

http://cinderelaprocurasapato.blogspot.com/

Carissimos,

esta será a minha nova casa:
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Um beijinho a todos

Vera

terça-feira, 2 de março de 2010

O outro homem da minha vida


Para aqueles que nós que vivemos boa parte das nossas vidas longe de quem nos é ligado pelo sangue têm sido os amigos a amparar-nos as quedas. Tenho um, em especial, que foi durante muitos anos o meu colete salva-vidas e que mesmo agora, separados por quilómetros de distância e por ainda mais quilómetros nos rumos que demos às nossas vidas, continua a ser, e sempre será, o meu Amigo.
Conhecemo-nos da forma mais inusitada possível e com escassas possibilidades de empatia, dado que quem olhava para nós via tudo menos o Pin e o Pon em que nos tornámos. Suponho que o click tenha ocorrido naquela noite de Queima em que acelerámos pelas ruas, Janis Joplis bem alto na rádio, e ele mete a cabeça de fora e grita desalmadamente, quase como um uivo, tentando acompanhar a música. Ficámos quase irmãos nesse dia e assim tem sido desde então.
Posso vangloriar-me de ter conseguido arrastar um retrossexual puro para tardes de compras (impossível esquecer o rosto de desespero no meio de uma Zara transformada em campo de batalha de mulheres enlouquecidas pelos saldos). Foi meu confidente em tudo, desde preparações de “first date” até noites terminadas a chorar no seu ombro. Aguentou-me desvarios alcoólicos, noites mal dormidas, intoxicações alimentares, desgostos de amor. Deslindou-me os mistérios do futebol, das várias preferências masculinas, da informática, da sangria e da cura de ressacas. Fomos de férias, de fins de semana, de jantares, de noitadas, fomos de tudo. Somos de tudo ainda.
Entre as mais deliciosas recordações que tenho com ele está a do dia em que me embeicei pelo senhor do carro ao lado, na bomba de gasolina, e entrei em pânico ao pensar que aquele cavaleiro andante pudesse sequer supor que nós éramos namorados, já que partilhávamos o carro em grandes gargalhas. Ainda ponderei seriamente a hipótese de o expulsar do Veramobile, mas dado que chovia torrencialmente, e ainda em desespero de causa, implorei-lhe que adoptasse qualquer gesto gay, na vã tentativa de demonstrar lá para fora que dentro daquele carro só havia fraternidade pura. Mas pedir isto a um hetero… enfim, é complicado. De modo que foi doloroso ver o pobrezinho a tentar qualquer posição mais afeminada sem perder a compostura.
Eu, que sou menos melhor pessoa do que ele, fiz o meu melhor para o fazer sentir especial na minha vida. Aguentei impávida e serena intermináveis campeonatos do mundo de futebol a ponto de conseguir discutir foras de jogo com qualquer comentador desportivo; aguentei-lhe, ainda com mais dor, um ou outro amigo ao qual só não dei o devido tratamento em nome de todo o respeito, lealdade e do sentimento imenso que tenho por ele (se bem que o magricela que me apalpou estava mesmo a pedi-las); e cheguei até a ser minimamente simpática para pseudo-namoradas terrivelmente duvidosas.
Fomos alvo de intermináveis piadas sobre a nossa suposta amizade. A verdade é que quando um azul e uma cor-de-rosa passam tanto tempo juntos acabam por enrolar-se nos lençóis. É quase uma lei de Murphy. Mas connosco nunca foi assim. Por muitos meninos-amigos que tenha tido na vida nunca me senti tão confortável como com ele. A prova viva de que efectivamente pode haver amizade genuína e pura entre os sexos. Sem querer transformar isto num tratado de psicologia asseguro aqui que este homem – lindo, devo dizer – foi o meu amigo mais íntimo sem nunca cairmos em intimidades.
Este sempre foi um ponto crucial entre nós: a questão dos amores. Neste designativo geral incluo interesses, paixões, engates, amassos, mas, sobretudo, namorados. Felizmente os meus sempre o adoraram e nunca me colocaram o mínimo obstáculo ao tempo que passo (passava) com ele. Já eu, receava o dia em que me apresentasse uma namorada a sério. Um pouco de sentimento de posse de uma irmã mais velha. Mas, principalmente, o temor de que a menina não estivesse à altura do homem fantástico que ele é, e do incrível namorado que sempre soube que ele seria. Mas coisas boas acontecem às pessoas boas, de modo que encontrou a melhor namorada que alguém pode desejar.
Botton line: O mundo dá muitas voltas, e com ele a nossa vida também. E por vezes cambalhotas desgraçadas. Mas há sempre alguém que nos diz “tem cuidado” e que nos faz pensar um pouco. No meu caso, é ele.
O texto de hoje é para o meu melhor amigo.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

MOMENTOS NA VIDA DE UMA BARBIE


Descobri que o talk-show da Tyra Banks passa logo pela manhã no canal das meninas. Ainda para mais fiz esta descoberta genial no dia em que ela nos ensinava como encontrar o homem perfeito. Imperdível!
De modo que, enquanto me enchia de pão (integral) com compota e leite (de soja) com chocolate tentava ao mesmo tempo decifrar os misteriosos enigmas da mente masculina. Era o pequeno-almoço perfeito: euzinha, a Tyra e autênticas lições de vida.
De repente engoli de um trago... ups!!! A conferência. Entusiasmada como estava com a hipótese do homem/príncipe/não-sapo nem dei conta de como o tempo passara depressa e dei por mim atrassadérrima (acho estes “érrimos” à tia do mais chique que há) para uma conferencia onde, vá-se lá saber porquê, participava eu com a minha palestrazinha sobre um desses temas comezinhos e consensuais de que tanto gosto de falar: comunicação social (ui!), segredo de justiça (ui, ui!) e escutas telefónicas (agora faltam-me “uis”). Caramba, que raio de dilema: desligar a televisão e ficar sem saber como encontrar o meu príncipe ou, em contrapartida, mentalizar-me intelectualmente para falar perante um auditório inteiro sobre um tema que estudava afincadamente desde há semanas. A muito custo desliguei a TV e pus-me a caminho, argumentando e contra-argumentando comigo própria sobre as várias questões de que tencionava falar. E como se isto não bastasse, chego lá e dizem-me que afinal, além do vasto auditório, me espera um público maior, porque afinal contam comigo para uma entrevista na televisão nacional. “Sobre?” , perguntei eu, na vã expectativa que o tema fossem sapatos, malas ou sobremesas de dietas, tópicos nos quais sou versadíssima: “Segredo de justiça”, dizem-me, como se a reposta fosse óbvia. Mas porque é que nunca ninguém me pediu para dar uma conferência sobre um daqueles assuntos? Será que não há quem se interesse por eles?... Hum….
É muito difícil para uma mulher ser uma Barbie nos dias de hoje. Eu bem quero dar asas à futilidade e preocupar-me apenas com coisinhas pequeninas e leves. Mas não, caem-me sempre em cima estas questões contundentes, densas, e algumas terrivelmente entediantes.
Convenhamos: não há nenhuma lei que me proíba de saber ler, escrever e contar até 10 (e umas coisinhitas mais) e, ao mesmo tempo, ser coquette, gostar de tolices, de dizer alarvidades intelectuais e de tardes de compras, cheias de tops brilhantes e calças justas. Onde é que está escrito que toda a mulher com cérebro activo é forçada a vestir-se como a avó? O que eu quero é as roupas da Madonna (no seus dias mais castos, se é que isso existe).
Fosse eu uma daquelas meninas que nas discotecas fazem publicidade a bebidas de cores estranhas e já nem ninguém estanharia os meus devaneios de Barbie. Mas como tive o azar de nascer com dois dedos de testa e parece-me que estou fadada a tratar de coisas sérias, a ser circunspecta, a ter conversas austeras, e a assumir sempre comportamentos dignos de tal. Ora, eu só quero ser eu.
E por muito interessante que me pareça o segredo de justiça, e documentários sobre a ex-União Soviética, e debates políticos na SIC, e filmes franceses com histórias que ninguém entende e onde tudo se passa a 10km à hora, a verdade é que, ao fim do dia, só já tenho cabeça para fast food intelectual. Dêem-me uma sitcom que não me faça pensar ou um show sobre bisbilhotices da vida das celebridades. Quero programas de moda e comédias com teenagers. Passe-me a Elle e a Vogue, que, apesar de tudo, sempre me pareceram leitura mais elevada do que a Maria. Deixem-me encher a mala (tamanho XL, como convém) baton e espelhos de bolso. de Enfim, deixem-me ser uma Barbie, nem que seja por um bocadinho.
Passar o Domingo no Museu, ou a debater filosofia existencialista, será certamente muito estimulante. Divertido, arrisco mesmo. Mas depois de uma semana inteira a dar o melhor de mim numa profissão intelectualmente extenuante, e mais ainda, a discutir coisas que passam ao lado do comum dos mortais, eu só quero mesmo vestir a micro-mini-saia e sair para dançar, ou deitar-me no sofá a ver na TV os filmes lamechas de Domingo à tarde. Arrisco até a dizer que sou bem capaz de engolir uma novela, desde que tenha uns tipos jeitosos.
Uma Barbie? Sim. E…? Alguém perde o sono com isso? Bem me basta a mim perder o sono esta noite por ter ficado sem as preciosas lições que toda a mulher deve saber sobre como encontrar o homem ideal.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

FIRST LOVE IS THE DEEPEST?


Lamentava-se há dias um amigo de como gostaria de ter sido alguma vez o primeiro amor da vida de alguém. Respondi-lhe que, se o não tinha sido até agora, já dificilmente o seria. É que depois dos trinta todos aqueles com quem nos deparamos pelo caminho já trazem consigo uma pesada bagagem emocional, e muitas vezes física. Ao lado de desgostos, alegrias, momentos de felicidade imensa, histórias mal contadas e, decididamente, mal terminadas, por vezes carregam ainda mulheres das quais se divorciaram e filhos dos quais nunca se vão divorciar (de modo que, quanto a estes, só temos duas hipóteses: ou os amamos e vivemos com eles ou os odiamos e vivemos com eles).
Isto para dizer que a utópica possibilidade de ser o primeiro amor de alguém vai diminuindo abruptamente com o decorrer do tempo, dada a quase total improbabilidade de aos 40 anos encontrar um espécime da nossa mesma idade que até então se tenha furtado a todo o tipo de contacto amoroso,
Mas, para além disso, quem quererá efectivamente ser o primeiro amor de alguém? Ou seja, escapa-me o interesse em ser o estádio inicial de um percurso que obviamente não vai terminar ali e, se terminar, tal deve-se a um erro crasso de julgamento de quem pensa que a pessoa que primeiro nos encanta vai ser aquela que mais nos encanta. Quando ficamos com a primeira coisa que nos surge pela frente nunca temos ponto de comparação. Pensamos que aquela é a melhor que existe, mas creio que secretamente se mantém o desejo de experimentar outras. Pode bem suceder que no final regressemos ao tal primeiro amor, mas só devemos tomar essa opção depois de arregalarmos os olhos para o mundo, nos apaixonarmos e desapaixonarmo-nos, e concluirmos por fim que aquele é o nosso lugar. Não podemos é ficar porque temos medo de partir.
Pela minha parte nunca quis ser um primeiro amor. Bem pelo contrário, quero ser o último. O último amor de alguém que já conheceu muitos outros na vida e que ao chegar a mim vai poder dizer, conhecedor do que existe por aí e do que viveu com essas outras pessoas, que eu sou aquela com quem quer ficar. Este juízo não pode ser feito nem aos 18 nem aos 20 anos, quando o nosso mundo é tão pequenino que qualquer presença o enche.
Quanto a mim, posso agora finalmente apreciar aquele com quem estou precisamente porque estive com outros antes. Mas segui o meu caminho sem eles. Do meu primeiro amor tenho recordações vagas. Nunca me vai desaparecer da memória, é certo. Não esqueço o meu primeiro beijo, tal como não esqueço a primeira vez que andei de avião ou que acordei de ressaca. Mas a verdade é que há muita gente que passou pela minha vida e que não consigo apagar. Não significa isto que tenham sido os meus maiores amores. A razão pode ser, simplesmente, terem sido os que mais me magoaram. Ou os que mais me mentiram. Há tantos motivos, e tão relevantes, pelos quais não esquecemos alguém que muitas vezes o motivo torna-se bem mais importante do que esse alguém.
Todos os amores são profundos enquanto duram. Não têm que ser bons. Podem ser profundamente maus. Os meus eleitos são os profundamente intensos. Depois de terminaram pode restar uma leve lembrança ou uma marca impressiva. Aqueles que nos marcam tornam-nos, umas vezes, melhores pessoas, outras vezes piores. Nunca ficamos exactamente iguais. É o conjunto de todas essas marcas, como uma manta de retalhos de paixões que o nosso amor presente vai encontrar. Esse amor presente é sempre o maior, o mais profundo, o mais intenso. E se o for o suficiente será também o último.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Vera Lúcia Lda., sociedade unipessoal, apresenta falência


Os saldos estão finalmente a terminar. E digo finalmente porque a empresa que se aloja dentro do meu corpo, gerida pelo Tico e pelo Teco, está prestes a apresentar falência. Esta lastimosa situação não se deve a má gestão, não senhora, mas sim a uma conjuntura altamente prejudicial: preços baixos aliados a bens de consumo, absolutamente necessários e absolutamente apetecíveis. Atire a primeira pedra quem nunca esgotou o plafond do cartão de crédito numa tarde de compras!
É certo que para fechar as portas dos meus armários tenho que depositar todo o meu peso do corpo (e quando digo todo, note-se que, falo de um peso pluma… que me caía já um raio em cima se estou a faltar à verdade) na porta, rezando para que não me caia em cima do nariz um vestido ou, pior ainda, um casaco de pêlo bem grosso, que sempre seria capaz de endireitar o arrebitamento do nariz.
Além do mais, o argumento da minha mãe de que eu só tenho um corpo (“e para que precisas tu de tanta roupa? Quantos corpos tens? Bla, bla, bla…) cai por terra quando nos lembramos de que o ano tem 365 dias, de modo que o meu único corpo precisa de ser coberto (nem que seja minimamente) durante dias, e dias, e dias, e dias…já sem contar com as vezes em que tenho que mudar de roupa várias vezes por dia.
E devo ainda acrescentar, em minha defesa, que muitos dos trapos pendurados nos cabides me custaram tanto quanto um almoço no MacDonals. Nasci com o dom de encontrar pechinchas no meio da maior confusão e abençoada com a paciência necessária para fazer peregrinações por dezenas de lojas até encontrar a peça ideal, ao preço ideal. Que isto de auferir um salário com poucos dígitos não permite grande margem de manobra e apela ao espírito criativo. Se para pagar a Gucci teria que me endividar até ao ponto de ser forçada a vender os óvulos, então, a Zara e Mango chegam muito bem. E em dias de celebração (a publicação de um artigo, o elogio de um professor, uma palestra bem-sucedida) sempre podemos celebrar com um pequeno luxo. De modo que a questão está em encontrar mais factores de celebração. Nesta altura do campeonato até a perda de um kilo já me chega para um festejo na casa das peles.
Tudo começou com a mudança para Lisboa. Apesar de não o ter planeado, a verdade é que no caminho de casa para o escritório sou forçada a passar em frente a autênticos antros de perdição para a minha conta bancária. Ora, como não posso mudar nem de casa nem de emprego tenho que viver com isso. Ainda resisti heroicamente durante os primeiros dias, mas na segunda semana decidi hastear a bandeira branca e pedir a rendição às forças demoníacos do consumismo e da vaidade. Que hei-de dizer? Sou uma mulher fácil. Basta que me acenem com uma pequena malinha da Guess e corro mais que o Obikwelo.
Depois veio a viagem a Nova York. Viagem em trabalho, note-se. Mas, novamente de forma totalmente não planeada, eis que chegamos à Grande Maçã em plena época de promoções. Já ouviram falar na Black Friday? Pois é bebé, eu e as meninas em NY no dia do crash dos preços. Quem iria perder a oportunidade de uma botas compradas na 5th Avenue, com 50% de desconto. E o burro sou eu?
Quando já tinha encerrado o plano das despesas sazonais, eis senão quando passo, inteiramente por acaso, numa certa e determinada rua, onde entro, inteiramente por acaso, numa certa e determinada loja e, de novo inteiramente por acaso, me perco no corredor de sapatos (ainda diz a outra que não há coincidências…), e meto os olhos no par de sapatos mais estonteante que alguma vez vira. Pensei logo que se aqueles sapatos fossem férteis queria ter filhos com eles. E pronto, tive que os trazer comigo para casa.
Não sou tonta ao ponto de achar que vivo mais feliz rodeada de tantos enfeites. Mas reconheço que sou suficientemente fútil para, naqueles dias em que acordo com uma nuvem negra a pairar sobre a cabeça, me sentir melhorzinha ao vestir o casaquinho justo de pele e o chapéu feito à mão, que por acaso encontrei numa rua de Bruxelas. Ao puxar o fecho para cima e ajustar as flores do chapéu na minha cabeça sinto-me a princesa mais importante do guarda-vestidos.
Reconheço que cheguei a gastar um salário mínimo numa peça de roupa. Mas, caramba, que culpa tenho eu do salário mínimo ser tão baixo?

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

O DIA DE S. VALENTIM (ou o dia dos meninos com quem ninguém brinca no recreio)


Há dezenas de anos atrás, quando eu usava tranças e meia às riscas até ao joelho, tinha sempre atrás de mim um exército de meninos e meninas que me acompanhavam nas brincadeiras. Sim, eu, que até sou bicho-do-mato, e sabe-se lá porque motivo, era popular no recreio (só na adolescência é que comecei com as crises existenciais que me remeteram para uma dimensão à parte dos restantes mortais). E olhava de soslaio, até com certa impiedade para os meninos que passavam aquela deliciosa meia-hora encostados à parede, mastigando o seu pão com Tulicreme (o antecessor da Nutella) enquanto olhavam para o chão e pontapeavam um pedra ou uma carica. E eu passava por eles a correr, os caracóis todos no ar, rindo bem alto para não poderem evitar ouvir-me, e lançando-lhes aquele olhar misto de comiseração e superioridade. “Vejam, vejam, eu tenho amigos e vocês não”. Quem disse que as crianças são a melhor coisa do mundo esqueceu-se sem dúvida da crueldade infantil.
Crescemos, tornamo-nos mais civilizados, aprendemos a compreender o infortúnio dos outros e a ser gentis para com eles, mas não conseguíamos viver sem uma forma de os fazer sentir mal. Até os adultos precisam do seu recreiozinho, da sua careta na cara dos meninos que não têm com quem brincar. Foi assim que nasceu o Dia dos Namorados. Creio que lhe demos o nome de um santo para tornar esta partida menos cruel, mas no fundo, bem lá no fundo, do que se trata é de lembrar a quem está sozinho que, efectivamente, e perdoem-me o pleonasmo, está sozinho. É claro que celebrar o nosso amor, comprar ursinhos de peluche vermelhos e almofadas em forma de coração cor-de-rosa, e tal e coisa, tudo isso é engraçado, pelo menos para quem acha, como eu, que o kitch é o novo moderno. Sobretudo para quem tem namorados mais expeditos, que passam ao lado dessas coisas fofas e embaraçosas e optam antes por oferece r uma caixa de bombons ou umas calcinhas de renda (claro está que o primeiro presente impede a possibilidade do segundo, sob pena de o homem se ver a braços com um cachalote de lingerie). E se tiverem mesmo muita sorte ainda vos calha um namorado generoso e com heranças de família com um anel de rubi, quem sabe se acompanhado por um concerto no Rivoli, quem se sabe se dentro de um petit gateau que vos parta um dente ao tentar mastigar chocolate e jóia ao mesmo tempo.
Todas estas são coisas boas do Dia dos Namorados. Mas bom, bom mesmo, é atirar isto à cara de quem não tem namorado. Pois há lá coisa melhor do que passar de mão dada com o dito junto à menina sentada sozinha no restaurante, que finge ler a Vogue enquanto lança olhares melosos a tudo o que é homem sem aliança? Melhor mesmo só atirar balões de água aos tais coleguinhas que passavam o recreio sozinhos. Que hei-de dizer? O ser humano tira satisfação pessoal de coisas brutais.
Em tantos anos de vida já passaram por mim Dias dos Namorados de todas as formas e feitios, com todas as companhias, alegrias e tristezas, desde jantares junto à praia com uma amiga até serões sem pipocas e com um filme de terror, em substituição da love story que eu tinha pedido antes de entrarmos no clube de vídeo. Excedem os dedos das mãos e dos pés os Dias de Namorados em que fui eu a tal freak do recreio. Confesso que, em regra, não geri bem a situação. Não porque quisesse necessariamente um namorado. Aliás, durante muitos anos fui opositora acérrima de qualquer troca de fluidos. E mesmo quando compreendi que afinal aquilo era bom e não magoava continuei partidária do slogan da mulher do novo milénio, independente e sem anexos, que fazia o que bem queria e não precisava de homem algum, excepto do canalizador e do electricista. Mas, por muito bem que vivesse comigo nos 364 ou 365 dias do ano, este dia em particular sempre me deitava abaixo. Uma pessoa pode estar bem sozinha, mas ao recordarem-na que está sozinha sente como se todo o planeta tivesse partido para outra galáxia e se tivesse esquecido de si. Nem sei o que transtornava mais: se o facto de não ter ninguém comigo, se o facto de não querer ter ninguém comigo. Nem vou divagar acerca da longínqua hipótese de ninguém querer estar comigo.
Este dia 14 será o primeiro S. Valentim que passo com o actual amor. Não planeio fazer nada de extraordinário (as jóias, essas, estão mesmo fora de questão, embora já tenha avisado 856 vezes que tenho os dedos fininhos). Espero poder ter a oportunidade de passar com ele no recreio e fazer a tal careta aos meninos sozinhos. Afinal, Dia dos Namorados sem fazer alguém sentir triste e só nem seria Dia dos Namorados. Mas espero sobretudo que ele me faça desejar tê-lo por companhia nos próximos 50 S. Valentins.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

A Outra


A Outra é aquela que eu não sou.
A Outra senta-se onde um dia eu me sentei, deita-se onde me deitei e é amada como eu fui. A Outra vive a vida que era para ser minha. A Outra é tudo aquilo que eu fui e que um dia quis ainda ser. E mesmo quando o deixei de querer, continua a ocupar um lugar que sinto que é meu, e não dela.
Durante muito tempo aguentei ressentida a presença da Outra. Nunca a odiei. Não porque esse sentimento esteja completamente afastado da pessoa que sou. Gostava de poder dizer isso, mas estaria a mentir. Mas porque a dor era tão grande que não deixava espaço para o ódio. Há dores assim. Consomem-nos tanto que aniquilam qualquer outra emoção, positiva ou negativa. Simplesmente, doía-me vê-la. Mais ainda, doía-me imaginá-la. Não invejava o sítio que ela ocupava, porque antes já eu lá tinha estado e bem sabia que não era, definitivamente, o meu sítio. Mas havia ali um sentimento de ter sido usurpada, espoliada, expropriada, enfim, qualquer outra forma verbal que exprima a excisão de uma parcela que pensamos, ainda que ilusoriamente, que nos completa e define. Sempre soube que não foi ela a responsável pelos meus males. Não fora ela a rejeitar-me, a magoar-me, a destruir o futuro que tinha já marcado no meu calendário de vida. Mas por algum motivo era tão mais fácil culpá-la a ela do que a ele, e foi isso que eu fiz.
Não que alguma vez tivesse desejado verdadeiramente trocar de lugar com a Outra. Nem quando andei perdida. Muito menos quando me encontrei. Mas o res(sentimento) pela Outra esteve sempre lá. Independentemente de quem ela fosse. A Outra foi loura, morena, mais alta, mais baixa… pouco importa. Não é o ADN que determina quem é a Outra. Tal como o Presidente da República não é uma pessoa mas um cargo, também ela não é uma mulher, mas uma posição.
Nunca deveria ter querido saber coisas acerca dela. Mas há uma parte de mim (de nós) que vibra com o desvendar de pormenores mórbidos. Todo e qualquer detalhe se tornou essencial: como penteava o cabelo, como usava os lenços, qual o timbre de voz. E assim fui guardando na memória vários mínimos pormenores das diversas Outras que se sucediam. No final só havia a Outra, um ente abstracto que me gastava os pensamentos.
Se a minha vida fosse um filme – indiano ou outro qualquer – provavelmente um dia far-lhe-ia uma espera, puxava-lhe os cabelos e, se o realizador fosse o Tarantino, era bem capaz de lhe passar por cima com as rodas do meu jipe. Mas como habitamos na vida real limitei-me a sonhar - ou melhor, a pesadelar – com ela e a seguir-lhe os passos com aquele olhar perdido que durante tanto tempo viveu na minha cara.
Como digo, nunca lhe quis mal. Todos os meus neurónios estão conscientes de que ela é tão culpada quanto eu neste drama de novela das 7. Menos culpada ainda. O silêncio da Outra neste enredo é o silêncio dos inocentes. Dito isto resta explicar porque me batia o coração com a sua passagem e me sentia morrer sempre que alguém a trazia à baila.
A Outra é aquela que eu não sou.
Mas não posso esquecer que também eu acabo por ser a Outra de alguém.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

O representante sexual


Reza a história que por vezes encontramos o amor das nossas vidas, com o qual seríamos felizes para sempre, não fosse o miserável e singelo pormenor de esse suposto amor ser, afinal, um “eunuco” no que respeita à nossa felicidade entre os lençóis.
Passo a explicar.
O homem (faço notar que esta tragédia assola qualquer dos dois sexos, simplesmente, usarei aqui a perspectiva feminina por ser aquela com a qual estou mais familiarizada) surge aos nossos olhos como o príncipe encantado: faz-nos rir sem nos fazer chorar, cozinha para nós e oferece-nos flores, abre-nos a porta do carro e não se baba perante qualquer par de pernas, discute filosofia e politica internacional, aparece sempre limpo e perfumado, cuida dos bíceps e dos abdominais.
E quando pensávamos já ter encontrado o Santo Graal do amor (qual indiana Jones, salteadora do Homem Perfeito Perdido), eis que a dura realidade nos cai em cima (digamos, em cima do dedo gordo do pé para adensar a dor): é que a pele da criatura não faz faísca com a nossa. Somos o casal perfeito em tudo, encaixamos como duas peças de um puzzle mas, afinal, in the end of the day, não há magia.
Esta é uma frustração imensa. É que enquanto andamos à procura sempre nos resta a esperança de ele aparecer. Mas que fazer se depois de o encontrarmos descobrimos que, afinal, o nosso homem é príncipe no resto do mundo, mas um sapo no quarto?
Convenhamos: não resta outra hipótese senão a amizade. O sexo não é tudo. Mas sem ele, num par de dois, nada mais existe. Ou melhor, existem muitas coisas boas – companheirismo, respeito, confiança – mas não existe paixão. Esta é também uma forma de amor, mas que pouco difere do modo como amamos o papá e a mamã. Quando não há química arriscamo-nos a passar a vida ao lado do nosso melhor amigo. Podia ser pior, é certo. Mas também é certo que merecemos melhor do que isso. Defendo aqui, publicamente, o direito inalienável a uma paixão avassaladora.
Depois de segundos imensos a pensar neste complexo problema descobri uma solução que, não sendo perfeita, é, no mínimo, juridicamente inovadora: o representante sexual.
Pois se nos podemos fazer representar na assinatura de um contrato, e em muitos outros actos jurídicos, porque não no acto sexual? Aliás, os menores, os incapazes, os ausentes, todos eles podem ter representantes que supram as suas insuficiências. O que proponho agora é um representante sexual que colmate a lacuna de performance desses homem tão perfeito vestido e tão imperfeito sem calças.

domingo, 31 de janeiro de 2010

Porque os corações batem em todas as criaturas do planeta


Uma das minhas primeiras nannys foi a gata que acompanhou a minha mãe durante toda a gravidez, e que depois acompanhou os meus primeiros anos de vida, naquela forma pachorrenta, doce, mas quase arrogante, que caracteriza os felinos.
A este miau muitos outros se seguiram até ao meu último companheiro de jornada, um Gabriel que nasceu gato e não anjo, mas que para mim, naquela noite em que me foi entregue pelo “tio” Paulo numa caixa de cartão, foi um anjo salvador. Pelo meio apareceram no meu caminho dezenas de gatos e gatinhos, vários cachorros (o Vladimir teve até direito a uma dedicatória na tese, que circula por aí dando-o a conhecer ao mundo), uma hasmterina , de nome Catarina Eufémia, que se alimentava de variadas sementes, mas especialmente das pontas dos meus dedos; um Martin Luther King canarinho, que fazias as delicias dos gatos da casa na altura; e um coelho anão, que morreu brutalmente assassinado pelo gato do padeiro, fazendo assim jus, com o seu destino trágico, ao nome com o baptizei: Oscar Wilde. Resta dizer que o Gabriel vive neste momento com os “avós”, porque gosto demasiado dele para o ter todo o dia fechado no meu pequeno T2, para qual só volto noite cerrada, e que cada vez que falo com a minha mãe ao telefone me conta ela todas as gracinhas e aventuras do meu filhote gato.
Esta abreviadíssima biografia serve para ilustrar o papel que os bichos sempre desempenharam na minha vida. Lá em casa faziam parte da família, e assim cresci habituando-me a respeitá-los e a amá-los.
A ligação sentimental que tenho com a bicharada é, pois, do maior, apreço e carinho. Gosto deles como se gosta daquele amigo que está sempre ali, e não arreda pé por muito que o ignoremos.
Não quer isto dizer que à luz de uma apreciação jurídica defenda que os animais são pessoas e, como tal, titulares de direitos. Não me repugna quem sustente tal posição (aliás, acho estimulantes as leituras de Peter Singer) mas, simplesmente, não é a minha. Ou melhor, por enquanto, não é a minha.
Todavia, e aqui reside o problema, tão-pouco são coisas. Partir uma pata a um animal está longe de ser equivalente a partir a perna de uma mesa, e quem defenda que o não é, aí sim, já me repugna a ponto de me dar voltas ao estômago.
As insuficiências com que o direito se depara no momento de enquadrar juridicamente os animais derivam da escassez de conceitos com que operamos: tudo é “pessoa” ou “coisa”, e fora deste binómio nada mais existe. Ora, creio eu que no meio existem muitas variantes, nomeadamente variadíssimos tipos de tertius genus, que não sendo pessoa, merecem porém um respeito e uma protecção acrescidos.
Não significa isto que tenhamos que ser todos vegetarianos. Eu fui-o durante 7 ou 8 anos, mas a páginas tantas comecei a sentir-me demasiado infeliz com a ausência de uma pata de peru no meu prato. Hoje como carne e peixe, uso sapatos e casacos de pele, e já várias vezes sentei o meu rabiosque num sofá de pele também. Provavelmente isto faz de mim uma má pessoa, e estou a tentar abdicar destes “caprichos” utilizando apenas peles sintéticas Mas – e este é um importantíssimo “mas” – sou absolutamente incapaz de matar ou torturar um animal pelo simples e puro prazer que daí se possa retirar, mas que de todo me escapa . De modo que touradas, lutas de cães, utilização de animais na industria cosmética, atropelamentos como desporto, defendo eu que tudo isso deveria ser sancionado, alguns mesmo criminalmente.
Era eu uma jovem académica “inconciente” quando fui convidada para uma conferência sobre os supostos direitos dos animais. E aquilo que disse na altura (e que deixei escrito em alguma diskete perdida no tempo neste mundo de PC’s sem disketes) mantenho-o agora: só as pessoas têm direitos, mas as não pessoas podem estar protegidas de diversos modos. Aliás, isto mesmo defendo eu para os embriões e fetos. Recordo-me até de uma célebre conferencia de direito médico na América Latina, onde me coube falar de logo após um almoço demorado numa tarde quente, e para acordar a audiência estas foram as minhas primeiras palavras: “Os embriões são como os cães”. Escusado será dizer que quase fui apedrejada como uma Maria Madalena. Mas a verdade é esta: nem uns nem outros são pessoas, logo não t~e, direitos, mas merecem uma protecção jurídica não muito distante da nossa.
No caso dos animais, sendo eles criaturas que partilham connosco o espaço planetário e, mais do que isso, as nossas vidas, as alegrias e tristezas (as solidões, as ausências, as perdas), creio que é o nosso próprio estatuto de pessoas dotadas de dignidade humana que nos impõe um comportamento digno para com os animais. É que isto de ser pessoa humana não nos atribui apenas direitos, mas igualmente obrigações. Uma delas é a de tratar com respeito as outras criaturas, não as matar de forma arbitrária e com sofrimento e, na medida do possível enriquecer a sua existência tal como elas enriquecem a nossa. Quando assim não sucede, quando matamos com prazer e nos regozijamos com a dor (recordo-me de alguém que me falava do prazer intelectual que as touradas lhe proporcionavam ao ver o touro a escorrer sangue da boca, o que me demonstra que obviamente nunca encontrou outras formas de satisfação do espírito tal como ler ou livro ou jogar xadrez), degradamo-nos nós mesmos ao estatuto de bestas e, por conseguinte, deixamos de ser dignos da dignidade. A bestialidade é incompatível com a dignidade e com o reconhecimento de direitos.
Podia continuar a encher páginas com divagações jurídico-filosóficas sobre o estatuto ético e jurídico dos animais. Mas a verdade é que as milhentas palavras que possa escrever ficarão sempre aquém do olhos do meu gato quando me vê, me lambe as mãos e ronrona suavemente acariciando-me as pernas.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Crónica de um desamigamento anunciado



As minhas relações de amizade foram sempre atribuladas. Porque eu sou atribulada. De modo que ao longo destes anos já atropelei emocionalmente uma série de amigos meus (não falando dos pseudo e dos meros conhecidos), umas vezes imbuída de razão, outras apenas imbuída de mim mesma e do meu ego.
Recordo o dia em que dizimei a uma boa amiga por ter publicado sem autorização fotos minhas no Hi5, e passo agora os olhos pelas 34587 fotos que anos mais tarde eu própria meti a circular nas minhas páginas pessoais. Também me aborreci com a que criticou a minha decisão de comer com chapéu (e continuo a achar que é uma das prerrogativas de ser senhorita) e com aquela outra que trocou as confidências que desde a infância trocava comigo pela intimidade do tete a tete com o namorado.
Admito: sou hiper-mega mimada. E sou muitas outras coisas mais. Felizmente, quis o cosmos - ou a senhora que manda nisto tudo (estou convencida que é uma senhora) – que me calhasse nesta lotaria que todos jogamos quando nascemos o pacote dos melhores amigos do mundo. Que não me amam pelo que sou, mas sim apesar do que sou. É que fossemos nós perfeitos os amigos não nos faltariam. O que torna o feito notável são precisamente as nossas imperfeições.
Os amigos, em contrapartida, são praticamente perfeitos. O “praticamernte” resulta de nano-micro lacunas que por vezes descubro num ou nutro. Mas são quase sempre tão minúsculas que é manifesta a sua incapacidade para alterar a admiração, o respeito, o carinho, que sinto por eles.
Depois… há o resto.
O resto são aquelas falhas do tamanho da Falha de Santo André, também elas causa de brutais tremores de terra na minha cabeça. Passamos anos a alimentar uma certa imagem da pessoa, como sendo cor-de-rosa e sabendo a algodão doce, e depois subitamente no minuto passado descobrimos que afinal a sua alma é baça e sem cor, e o seu sabor aproxima-se do de ovos podres com pão bolorento.
E quando isto sucede temos dois momentos de pânico. Primeiro, apodera-se de nós aquela desilusão só sentida quando pegamos num cartão de crédito que já ultrapassou o limite ou quando chegamos à sapataria depois de terem vendido o nosso número. Uma dor imensa, portanto. Depois, somos assaltados pela dúvida, mais metódica do que a própria dúvida cartesiana: “será isto suficiente para deixarmos de ser amigos?”. Aliás, reformulo, porque mais angustiante ainda é quanto esta interrogação assume a fórmula dramática de “será que ainda podemos ser amigos depois disto?”. É que há ao lado das pequenas coisas que rapidamente esquecemos, há coisas maiores que nos fazem meditar, e coisas verdadeiramente gigantes que demonstram o erro que foi trazer aquela pessoa para a nossa vida.
Estava eu perdida nestas batalhas emocionais comigo própria quando a contra-parte decidiu por mim e, pasme-se (ou não), me “desamigou”. As novas tecnologias evitam-nos o embate de chamar nomes feios olhos nos olhos. Nem sequer precisamos de recorrer ao mais subtil método, mas igualmente eficaz, de ignorar a sua presença. Basta carregar numa tecla e excluir a foto do grupo de amigos. Como se ao sair do nosso ecrã a pessoa saísse também da nossa vida.
Confesso que foi com não pouca surpresa que, semanas depois do incidente, descobri que me faltava uma amiga. Não sei se naquele momento senti alívio, raiva ou tristeza. Mas alguma coisa senti. E pressenti que aquele desamigament se vinha anunciado deste o momento em que ela lançou para o ar (também no mundo virtual) a ideia que tinha parado o bater do coração e acendido o rastilho para a bomba que agora rebentava.
Ainda hoje não sei se eu a teria tomado tal opção caso ela não o tivesse feito, mas resta dizer que depois do desamigamento o meu coração começou a bater melhor outra vez …

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A MENINA DO BENGALEIRO (e sua tromba)


Lisboa, sexta-feira à noite. Um jantar capaz de me fazer ganhar 5 quilos numa noite, 2 copos de vinho, seguido de um par de bebidas doces, uma companhia mais doce ainda e, como uma cereja no topo do bolo, terminar a madrugada a agitar os caracóis numa pista de dança. A noite perfeita. Haveria alguma coisa capaz de me irritar? Sim. A menina do bengaleiro.
Não serei a pessoa mais simpática do mundo (nem quero ser, digo já), mas quando estou feliz (e eu estava) tendo a ser especialmente afável. Quanto à boa-educação, meus amigos, estou em crer que o meu nome consta dos top 20 mundiais. Não que seja mérito meu, mas da senhora minha mãe que desde cedo me ensinou o “com licença; se faz favor; obrigada”, que eu recitava em ladainha porque não percebia o contexto concreto de cada uma delas.
Pois bem, nessa noite de mil e uma noites saí eu, linda e fantástica, feliz, sorridente, um anjo, posso dizer. Até que dei de caras com a menina do bengaleiro de uma das casas da capital, que teimava em pedir-me 2 euros por peça (a acrescentar ao que tinha pago à entrada e ao que pagaria pelas bebidas). Até aí, eu ainda aguentava. Mas o problema é que o cavalheiro à minha frente (meu amigo, por sinal) apenas tinha pago 1 euro pelas suas duas peças. Interpelada perante tal incongruência, respondeu-me a dita cuja, com a sua tromba erguida aos céus, que os cachecóis não pagavam, por serem peças pequenas. Ora, vai daí, demonstrei-lhe eu que o meu casaquinho de malha era praticamente do tamanho de um cachecol, e que até podia muito bem enrolá-lo ao pescoço como uma encharpe. Mas a suposta senhora lançou-me um olhar ressabiado e proferiu estas sábias palavras: “Mas não é um cachecol. E mesmo que fosse, eu é que decido que cachecóis pagam e quais não”. Assim mesmo. Ela é que decidia.
Nesta altura do campeonato começava a apoderar-se do mim aquela irritação que nutro por criaturas pegajosas, mas disfarcei-a com o meu sorriso Channel. Agradeci-lhe a gentileza da explicação e ainda a louvei por ser raro encontrar na noite tamanha amabilidade.
Convenhamos: a regra dos dois euros por peça já é duvidosa e discriminatória para as meninas, pois é sabido que nós temos sempre mais peças do que os meninos e que gostamos especialmente de as deixar para trás neste tipo de sítios. Mas o pior, piorzinho, foi a menina do bengaleiro responder-me (a mim!!!!) com tamanha prepotência e arrogância, que ela é que decidia. Deve estar o mundo para acabar quando eu, que sou eu, recebo tal tipo de resposta, sobretudo não tendo dado azo a ela e, bem pelo contrário, a ter abordado de forma educada e especialmente simpática (tendo em consideração a pessoa que sou). A verdade é esta: nesta plantação de escravos só pode haver uma Sinhá, e sou euzinha (desculpa Camila), não é a menina do bengaleiro.
Mas não fiz ondas. Não reclamei. Não revirei os olhos… enfim, talvez um bocadinho, mas nada dramático. É que o meu mais que tudo lançou-me o olhar “por favor, porta-te bem” e não sou mulher para negar coisas ao mais que tudo.
Depois de 3 horas na pista a dançar, finalmente, o homem sente-se cansado. E eu respirei de alívio. É que estava à 180 minutos a ouvir musica e a pensar na criatura, vivendo de garrafas de água para nem sequer cheirar a álcool no momento da minha saída triunfal. Até ao quarto de banho eu fui antes de sair, não fosse ser assaltada por alguma vontade inesperada enquanto a dizimava.
Após ter os casacos na mão sãos e salvos, olhei para ela, como se nada fosse e:… “Ah, já agora, quero também o livro de reclamações”.
Escusado será dizer que saiu logo pela porta a gerente, que me convidou amavelmente a entrar para um local mais privado, e me tentou confortar as mágoas. Já eu, sereníssima, pedi-lhe para chamar a “funcionária do bengaleiro” (nome pelo qual a partir desse momento passei a tratar a criatura), porque não me parecia correcto falar nas costas dela. Note-se como até na filha da putice me revelo uma acérrima do due process e dos direitos do arguido. Ah, jurista até à medula…
A “funcionária” começou por negar ter dito o que disse, mas mantendo eu a minha tranquilidade de quem sabe que tem razão, e porque rematei a questão com um “não vale a pena estragarmos a noite, deixe-me só relatar o sucedido no livro de reclamações e certamente tudo vos correrá pelo melhor”, e porque me apresentei de nome completo (esta pega sempre) e me mostrei entediada, ela pensou melhor na vida. Perante este cenário dantesco para o estabelecimento, a “funcionariazinha” lá optou por pedir desculpa. E era só isto. Era só mesmo isto que eu queria. Não tinha a mínima vontade de perder tempo a escrever um romance, com letra bem redondinha, no livro das pessoas insatisfeitas, até porque sei os muitos dissabores que daí decorrem. Mas queria o reconhecimento da falta. É que o dinheiro custa-me a ganhar. Por isso, quando o gasto gosto de saber que é por uma boa causa: fazer-me feliz e ser bem tratada.
Curiosamente, a partir desse segundo começámos as duas a falar animadamente, e dei comigo a confessei-lhe que seria incapaz de ter o estômago dela para aturar bebedeiras e afins. E digo aqui publicamente que tenho a maior admiração por quem trabalha na noite… só que eu não me inseria em nenhum desses “afins”, pelo que merecia melhor do que uma tromba.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Quando somos a gordura que salta das calças


Qual a sensação de passar a noite com o casalinho de namorados que não deixa de olhar um para o outro, melosamente, e que aproveitam as nossos forçados momentos de distracção para se devorarem?
E de estar numa festa em que não conhecemos ninguém?
E de chegar de surpresa a casa de amigos que se preparam para uma uma private party?
É a de estar a mais. Como se as vidas, as diversas vidas das diversas pessoas, tivessem um limite máximo de lotação que já foi atingido quando lá chegamos. Um numerus clausus de presenças para cada momento da vida. Ou então, imaginemos que vidas são corpos a tentar enfiar-se numas skinny jeans, e por vezes damos por nós a ser aquele pneu irritante que já não cabe nas calças e que tem que saltar fora, de forma que o fica é um pedaço de gordura pendente da cintura.
Sempre tive fobia a ser esse pneu. Entre as recordações mais vivas que tenho da minha infância está precisamente essa de estar a mais. Acho que em diversos aspectos fui uma criança especialmente precoce. Reconheço que em muitos outros me tornei numa adolescente demasiado infantil, e que ainda hoje passo pela vida como uma adulta Peter Pan, que não cresceu nem sabe como fazê-lo. Mas essa minha precocidade fez-me despertar bastante cedo para preocupações mais próprias de gente crescida. A de ser uma presença inconveniente foi uma delas. Talvez que a minha bicheza do mato se deva em parte a esse medo em ocupar um lugar que não é meu.
Tendo em conta tamanha consternação, seria de esperar que jamais me tivesse colocado nessa ingrata posição. Acontece que vai uma grande distância entre o guião que escrevi para mim e a forma como as cenas concretas resultaram na película.
Agorinha mesmo, neste preciso momento, sei que estou a mais. Digamos que este será um daqueles takes que tenciono apagar. Queimar a película mesmo. Porque não me vou embora? Estou neste preciso momento à procura de uma boa justificação. Não sei se é mais corajoso ficar ou ir. Não é um daqueles casos em que sei a resposta correcta, só não a quero aceitar. A verdade é que não sei mesmo qual é…
Suponho que por vezes insistimos na nossa presença to make a point, esperando retirar daí uma qualquer espécie de vitória moral. Não é o caso. Outras vezes trata-se de um sacrifício pessoal em nome de um bem maior. Suponho que esse é o episódio de hoje. Faço isto porque sei que se o não fizer chegamos ao fim de um caminho que foi pensado para durar mais uns quilómetros, a distância toda até. Então, mesmo que me doa, fico. Engulo em seco e fico. Respiro fundo e fico. Empurro as lágrimas para dentro e fico. Dou um pontapé no orgulho e fico. Até ao momento em que ficar seja uma derrota maior que partir. Reconheço que postas assim as coisas parece que estou a falar de uma batalha mortal. Como se vê, o meu espírito megalómano transforma em lutas aguerridas pequenas insignificâncias da vida. Não vejo que seja grande defeito. Pragmática como sou , acredito que há que fazer o que for preciso para passar pelo mundo da melhor forma possível.
Mas voltando ao momento de hoje, a este segundo que está agora a cair no relógio, a verdade nua e crua é que estou a mais. E não deixa de ser possível pensar que só estou a mais porque não tenho mais sítios para onde ir.
Enfim, pouco mais há a dizer. Hoje sinto-me um pneu de gordura. Pode ser que amanhã acorde sentindo-me o músculo dos glúteos.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Desculpe, importa-se de repetir?


A história não é original.
Rapaz parte coração a rapariga. Rapariga bate com a cabeça nas paredes durante alguns meses, e no meio da perturbação decide que o único remédio é voltar a apaixonar-se. Mas aí está uma coisa mais fácil de dizer do que fazer. Porém, a força de vontade move montanhas e, pelos vistos, também corações. Um dia a rapariga encontra um rapaz amável e limpinho, e decide que será aquele a sua vítima. E tenta, tenta com todos os poros do seu corpo, criar ali uma paixão, alguma coisa a que se pudesse agarrar. Mas as comparações são inevitáveis, e quase sempre injustas. De modo que o rapaz estava a ser um paliativo, não a cura da doença de coração. Quando ela procurava as palavras apropriadas para virar as costas com alguma graciosidade ele facilita-lhe a vida. Mete o pé na argola de uma forma que ela não podia deixar passar. A rapariga suspira de alívio. Ao princípio. Depois, dá por ela a suspirar por ele. A ausência do rapaz é sentida como uma perda. Dias mais tarde o rapaz volta. Perde perdão. Chora baba e ranho. Implora. E a rapariga, cheia de medo de perder aquilo que lhe parecia a última oportunidade de se apaixonar, amolece. Mas antes mesmo de se consumar o acto de misericórdia afectiva ele falha de novo. Redondamente. Profundamente. Imperdoavelmente. E ela, que não é mulher dada a grandes gestos de clemência, desliga-lhe o telemóvel e bate-lhe a porta na cara. Não sentiu qualquer desgosto de amor… se calhar já nem está apta para sofrer mais nenhum, uma espécie de imunidade emocional que lhe adveio de uma dor crónica de coração. Pelo contrário, alivio. É que já é difícil partilhar a vida com alguém, mas é praticamente heróico partilhar quando não se gosta. E, de facto, aquela falta que tinha sentido num primeiro momento revela-se apenas a falta de uma presença abstracta e não de um “tu” particular. De modo que quando trancou a porta sentiu um peso sair-lhe de cima. Não apenas porque o “the end” chegou cedo (mas já tarde demais), mas também porque ficara evidente que ninguém se servira de ninguém. Ou melhor, tinha-se servido mutuamente um do outro. A rapariga porque queria uma companhia que lhe adoçasse o ego. O rapaz porque queria… o que queria, nem ela sabe. Tudo sem violação do princípio kantiano, porque, ao fim ao cabo, uma instrumentalização anula a outra.
A história é esta. Como bem avisei, nada de excepcional ou exótico. Gostava de ter outra coisa para contar, mas isto é o que tenho.
Porém, há aqui um desfecho extraordinário. É que passados meses de infrutíferos contactos por parte dele, decidi finalmente que poderíamos, e deveríamos, ser amigos. Não apenas porque partilhávamos agora a mesma cidade, mas também porque sentia falta do amigo que ele tinha sido um dia. E, convenhamos, a aproximação do espírito natalício deu um empurrãozinho. Marcámos um jantar. Eu estava ansiosa por retomar a nossa amizade no ponto em que a tínhamos parado. Mas para isso precisava de esclarecer uma série de mal-entendidos que poderiam aniquilar a nossa futura vida como “camaradas”. Durante um agradável jantarinho recordámos os bons tempos juntos. Queria, antes de mais, esclarecer algumas mágoas que poderiam ter ficado. Por conseguinte, rematei a conversa dizendo que acreditava que iríamos ser bons amigos, e que não podíamos deixar que um namoro de semanas se intrometesse no nosso companheirismo, até porque tinha sido uma coisa insignificante em termos de sentimentos, mais motivada pela mútua solidão do que por alguma outra coisa. “Afinal, nem sequer gostávamos particularmente um do outro”.
“Não, enganas-te. Eu estava perdidamente apaixonado por ti. “
Desculpe…importa-se de repetir?
Estás-me a dizer que gostava efectivamente de mim, que deitou tudo a perder porque sabia de deste lado havia um vazio, que sofreu com o fim? É isso que me estás a dizer?
Não sei se era isso. Posso garantir-vos que a foi uma noite maravilhosa, com um amigo que quase sinto como sendo de longa data, que me deixou à porta de casa e ficou ali a ver-me entrar antes de arrancar ruidosamente com o carro, que desde então não mais tive notícias dele, nem sequer uma resposta aos meus votos de feliz Natal, que não me atende telemóveis, e que o silêncio só foi quebrado por uma mensagem dizendo que estava de volta a um local que ambos tínhamos partilhado e que as recordações eram imensas. Deixo a cada um liberdade para divagar sobre o que ele terá querido dizer.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Simplesmente Viver

Este ano ainda agora começou e já me pregou uma partida. E como estamos no início do ano parece que isso ainda me entristece mais, faz-me reflectir ainda mais em como a vida de um momento para o outro pode ser cruel. A vida dá-nos uma abanão quando menos esperamos. É doloroso perder uma amigo, familiar, colega. Eu perdi um colega, uma camarada de trabalho. A vida é assim, parece que aprendemos mais com os momentos de tristeza do que com os momentos de alegria. Ontem foi um dia de reflexão, porque podia ter acontecido comigo.. que passo horas nas estrada, que me distraio com o tlm, que conduzo cansada, que aproveito para pôr as lentes de contacto quando paro num semáforo, que leio, vejo e tiro apontamentos, tiro dúvidas da obra, grito com subempreiteiros... tudo com as mãos no volante. Assim como ele. Ontem vi uma familia destruida. Que podia ter sido a minha. Foi por isso que ontem no cemitério eu e os meus colegas trocámos olhares cúmplices. Estávamos todos a pensar no mesmo.
Bem haja para ti, João.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Ensaio sobre a solidão



Pela estação ecoava a voz de “menina de rádio”, anunciando que todos os comboios estavam atrasadas em virtude de um acidente nas linhas. Um suicídio, ao que parece. Caramba, entre tantas formas de as pessoas se matarem têm logo que escolher uma que causa transtorno a tanta gente. Não a mim, porém. É que enquanto à minha volta o povinho se rebelava contra o poder absoluto do monarca CP, eu dei por mim a pensar, simplesmente, que era aborrecido. É que todos os demais tinham compromissos, gente à sua espera, jantares que estavam a ficar frios, crianças que reclamavam pelos seus mimos. Já eu… só me tinha a mim. Reformulo: já eu, só me tenho a mim. Nem sequer existe na minha vida um cachorrinho que anseie pela minha chegada para ir dar o seu passeio. Na verdade, é-me mais ou menos indiferente chegar às 8 da noite, às 9, às 4 da manhã, ou no tarde seguinte. Ou nunca chegar até. Simplesmente, porque eu não tenho ninguém à espera.
Por isso sou sempre a última a sair do escritório. Por minha vontade até lá dormir. Nem sei porque preciso de casa. Não fosse o problema de alojar as minhas caixas de sapatos e de livros bem que podia viver debaixo da ponte. É que ter uma casa pressupõe ter uma porta onde desejamos meter a chave na fechadura para entrar na home sweet home, onde há uma lareira acesa e um chocolate quente à nossa espera. Mas no meu caso, o na melhor das hipóteses tenho um pequeno aquecedor a óleo e um daqueles tabuleiros de comida pré-feira que meto no micro-ondas.
Há muito que desisti de cozinhar. Apesar de por vezes acreditar que nesta confusão que é a minha cabeça saltitam várias personalidades diferentes, o certo é que não existe uma Vera gourmet capaz de elogiar as aventuras culinárias da Vera cozinheira.
Em regra vivo bem comigo. Mas há dias em que gostava de ter um “contigo” com quem poder partilhar o nada que tenho. Ontem foi um desses dias. Sobrevivi a uma catástrofe emocional. Reconheço que para alguns seria um pequeno furo na estrada, mas para mim, que atirei o brio profissional para o topo da minha pirâmide de prioridades, aquilo foi um autêntico choque em cadeira. Pardon my french, mas diria mesmo que uma autêntica filha da putice o que me fizeram. Que bem me tinha sabido umas festinhas na cabeça, coisas melosas ditas com voz suave, uma mera presença física que mais não fosse. Não aconteceu assim. Talvez pelo melhor. O que não nos mata torna-nos mais fortes… dizem.
Claro que há dias diferentes. Também eu tenho os meus momentos de animal social. Reuniões, festas, jantaradas, saídas à noite. Mas, dê lá por onde der, a Cinderela tem que voltar para casa, nem que seja na meia-noite do outro dia. E quando volta… só fica ela, a abóbora e os ratinhos.
Because, in the end of the day, we are all alone.
E quanto mais depressa percebermos isso melhor vamos conseguir partilhar a vida com a nossa solidão.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Um pequeno remédio para a dor na alma

É tão difícil confortar alguém que a única coisa que quer é que o tempo passe depressa para que a dor comece a desvanecer... muitas vezes faltam-nos as palavras... e relembramos que também já passámos por isso e que não havia palavras que nos pudessem confortar. Sei que não existem palavras mágicas. Assim, peço ao tempo que passe depressa e traga paz as minhas amigas. O silêncio é sinónimo de compreensão.
Beijo Vera. Beijo Andreia.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Epidural para dores de alma



Se eu tivesse agora mesmo uma dor lancinante no estômago, nos dentes, em qualquer parte do meu corpo físico, corria para a farmácia, comprava aspirina ou, em última instância, Clonix, e a maleita supostamente passava. Se assim não fosse, apanhava um táxi para o hospital e, ainda que em plena agonia, pedia uma intervenção cirúrgica, uma epidural, uma transfusão sanguínea, eu sei lá…
Paradoxalmente, ninguém inventou ainda nada para as dores de alma. O que afinal redunda também numa dor física, porque não há nada de mais corpóreo do que o coração, que nos bombeia sangue para que tudo o mais funcione. E a alma, para todos os efeitos, é a magia que faz o vermelhinho bater.
Para as tais dores de alma parece que só mesmo o tempo, esse médico infalível, consegue aliviar o sofrimento. Mas o Dr. Tempo demora demais. A ferida tarda tanto em sarar que por vezes infecta e temos que ser amputadas. Eu, por exemplo, já ando aqui pelo mundo sem um bocadinho que mim, que se perdeu algures num destes episódios de infecção aguda.
Seria de esperar que quando a doença se tornasse crónica perdêssemos alguma sensibilidade para a dor. Um pouco como sucede com os sapatos apertados: após horas a fio com os bichos a devorarem-nos os dedos dos pés deixamos de os sentir e somos apenas mulheres lindas com sapatos fantásticos. Mas não. Concluo que a alma – pelo menos a minha – segue um timing diferente dos pés. E por mais machucada que esteja nem por isso perde a sensibilidade (diria mesmo, hipersensibilidade) à dor. Já perguntei por aí se alguém conhece uma epidural para dores de alma, mas consta que a ciência ainda não se ocupou deste problema. Também procurei nas Páginas Amarelas por um curso Lamaze de preparação para a dor aguda, mas a busca foi infrutífera. Resta-me treinar em casa exercícios de respiração na fugaz ilusão de conseguir controlar as contracções de tristeza, mas confesso que os actos de inspirar e expirar são relativamente inúteis quando as lágrimas atacam convulsivamente.
Mas como há gente tão inteligente nesse mundo todo, quem sabe se algum crânio no MIT, ou um daqueles senhores indianos que agora inventam tudo, não se lembrará de criar um transplante de alma. Não que seja muito apelativo andar por aí com a alma de uma pessoa morta, quase um fantasma dentro de nós, mas caramba… não há-de ser muita a diferença face a quem anda com o rim ou com a córnea de um cadáver. E neste momento, em que até já xenotransplantes se fazem, estou até disposta a aceitar a alma de um porco ou de um gato. Na verdade pouco me interessa o animal, desde que tenha sido feliz em vida.
Também já ponderei a hipótese de recorrer a células estaminais para a alma. O nosso primeiro (senhor licenciado em engenharia) instituiu o banco público de células do cordão umbilical. Porque não me aventuro eu na criação de um banco de células de alma? Anúncio: “Procuram-se dadores felizes, que queiram fazer outra pessoa feliz mediante as suas células almares (assim as baptizei eu)”. Mas como por mais que salte, faça o pino e me vire ao contrário ainda não descobri como extrair uma dessas células almares, e porque quase desconfio que a alma não é feita de células mas de pozinhos de prelimpimpim, chego à conclusão que não será na ciência que encontrarei resposta para a minha doença.
Só me resta esperar que a febre intensa e a perda brutal de sangue não me matem a alma. Não saberia onde a sepultar nem como viver sem ela.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Filhos de um Deus menor


Ontem à tarde, enquanto pedalava desenfreadamente no ginásio, na fugaz ilusão de matar as calorias que tomaram o meu corpo de assalto durante a época festiva, olhei para o ecrã da televisão que nos tenta distrair das dores musculares (e de alma, diga-se de passagem). Na SIC passava um documentário sobre a corrupção em África, mais propriamente no Quénia e na Serra Leoa. Nada de novo até aqui. Mas nuca é demais recordar. Recordar que há famílias que vivem em espaços do tamanho da minha casa de banho, mas… sem case de banho. Que estas cabanas se ergueram no meio de dejectos humanos, onde a única água disponível é a que escorre em esgotos imundos e a luz apenas a do sol ou a das velas. Que há quem tenha que escolher a qual dos filhos vai dar pão naquele dia. Que em certos países até para conseguir trabalhar um dia é necessário subornar alguém, de modo que dois terços do salário com que supostamente se iria alimentar os filhos acabam por encher os bolsos de pessoas que vivem da miséria de quem os rodeia.
Como dizia, nada de novo. Para mim, sobretudo. Depois de um par de anos em Angola posso dizer que estes olhos viram coisas inimagináveis. A miséria humana na sua forma mais crua. Não somente a material, a que mata o corpo, mas também a miséria de valores, que mata ainda mais. Os meninos da rua apontavam uma arma por um par de ténis. Um deles entrava sempre comigo no supermercado para que eu lhe comprasse leite em pó para o irmão bebé. Tinha alunos que iam para as aulas nocturnas sem jantar porque as propinas da universidade não deixavam dinheiro para o pão. Um menino com o corpo queimado fez-me festas no cabelo (no cabelo de oiro, dizia ele), porque supostamente eu seria um anjo que tinha vindo do céu para o levar dali para fora e o tirar daquela vida para um mundo melhor. Muita coisa vi eu em Angola. De algumas nem consigo falar, mas não esqueci. Nem quero esquecer. E também não esqueço como, a certa altura, já tudo aquilo me parecia normal. A violência, a morte, a dor, o sofrimento, passaram a fazer parte da minha vida. Ou eu parte de uma outra vida, nem sei bem. É incrível o quão rapidamente o ser humano se habitua às coisas, por mais pérfidas que sejam.
Mas ainda assim, ali estava eu, quase surpreendida, suor a escorrer-me pela testa, porque queria perder os pneus que ganhei com toneladas de comida. Nem falo de tudo aquilo que foi para o lixo. Nem de todo o dinheiro gasto em presentes que provavelmente nunca vão ser usados. Nem da conta que acabara de pagar numa loja de meias , só pelo prazer de ter colantes de trezentas e oitenta cores e feitios, cujo montante daria para alimentar uma daquelas famílias durante um mês.
A vida é, realmente, muito fácil para nós. Haja dinheiro para pagar as extravagâncias que o cérebro humano se lembre de inventar, e assim atingiremos a felicidade suprema. Não falo contra vocês, que me estão a ler, apaziguados com as vossas transgressões financeiras. Falo de mim. Cada um lida com as suas futilidades da forma que mais lhe apraz. Eu escrevo sobre elas.
Não sou católica. Enfim, não renego nada, porque para isso teria que ter a certeza que o renegado existe e nem isso tenho. Já se vê que tão-pouco nego a sua existência. Digamos que admito qualquer das possibilidades e, em última instância, tenho fé em mim e em todos nós. Creio que tudo o que existe de bom a nós se deve. Mas, impiedosamente, e até para manter a coerência lógica, penso também que aquilo que existe de mau é nossa obra. Porque se eu acreditar em Deus sou forçada a acreditar em vários deuses, para no final concluir que aquela gente que me olha tristemente pelo ecrã da televisão é, afinal, filha de um Deus menor.